O programa Voa Brasil e os desafios para a inclusão social no transporte aéreo
No âmbito do Núcleo de Economia do Transporte Aéreo do ITA, temos produzido ao longo dos anos estudos que envolvem produzir conhecimento sobre a inclusão social e econômica no setor aéreo brasileiro. Um dos pontos mais recentes de reflexão e que pode ser tema de novas investigações é o programa Voa Brasil. Destinado a oferecer passagens a preços reduzidos a subconjuntos de brasileiros com o intuito de reduzir desigualdades e fomentar a inclusão, o programa iniciou em julho de 2024 em uma primeira etapa focado no público de aposentados do INSS que não tenham viajado de avião nos últimos 12 meses. O lançamento do programa levanta questões importantes sobre o papel e a efetividade das políticas públicas voltadas ao transporte aéreo.
Uma questão inicial diz respeito aos hábitos de viagem do público inicial selecionado, aposentados. É fato que embora aposentados tenham mais tempo livre (inclusive para viagens), muitos não utilizam o transporte aéreo de forma recorrente, não apenas por baixa renda, mas por questões de saúde e mesmo menor inclusão digital que as demais gerações. Por exemplo, idosos podem ter maior dificuldade de encontrar passagens aéreas mais baixas do que outros públicos mais habituados com os esquemas de segmentação das políticas comerciais das companhias aéreas. Entre aposentados brasileiros de menor renda, essa realidade é ainda mais restritiva. Por outro lado, aposentados de alta renda representam um segmento distinto, que já utiliza o transporte aéreo regularmente. Esse público de maior poder aquisitivo normalmente integra programas de fidelidade e se beneficia de um status preferencial como passageiro frequente, além de usufruir de vantagens associadas aos cartões de crédito Black e ao acúmulo de milhas, o que reforça uma segmentação natural entre diferentes perfis de aposentados. O programa do governo, ao focar em indivíduos que não viajaram de avião nos últimos 12 meses visa reforçar essa segmentação, que de outra forma, seria naturalmente feita pelas companhias aéreas, dado que passagens mais baratas em geral não conferem as mesmas vantagens que passagens aéreas mais caras e repletas de atributos e mesmo de possibilidades de upgrade.
O programa Voa Brasil, ao permitir duas viagens por ano para aposentados que não tenham viajado recentemente, tem um foco claro no incentivo inicial. É aquele "empurrãozinho" da chamada Economia Comportamental, conhecido como "nudge". Para muitos, o programa oferece a chance de experimentar o transporte aéreo pela primeira vez, e ao incentivar uma frequência de uso um pouco maior (duas vezes ao ano), pode ter algum impacto de longo prazo na forma de um hábito consistente de viagens aéreas. Esse ponto é fundamental para uma política de inclusão sustentável, pois o transporte aéreo precisa se consolidar como uma opção viável e recorrente para o público de baixa renda, e não apenas como uma experiência única. Entretanto, há dúvidas se, uma vez o benefício da passagem aérea com preços reduzidos (atualmente duzentos reais) cesse, os efeitos de longo prazo se sustentam. É um pouco o mesmo dilema do Programa Bolsa Família, e aqui a aposta é que o efeito do nudge seja o caminho da ampliação da base de consumo do setor aéreo.
Não dá para negar que a visibilidade gerada pelo Voa Brasil traz um benefício indireto para as companhias aéreas, que recebem exposição midiática e veem suas políticas de tarifas acessíveis catapultadas de certa forma com o programa. Esse efeito funciona como uma “propaganda” indireta de suas políticas comerciais, fortalecendo a percepção de acessibilidade e atraindo potenciais novos passageiros, sem a necessidade de campanhas diretas.
Enfim, a questão em aberto é como transformar esse incentivo inicial, e outros que estejam por vir, em um comportamento duradouro e sustentado pelo próprio mercado. Integrar novos passageiros a programas de fidelidade e orientá-los sobre estratégias para encontrar tarifas acessíveis podem ser formas de tornar o transporte aéreo uma prática mais habitual e autossustentável. Um primeiro requisito o governo atendeu: criou uma política que não fere diretamente ao livre mercado, mantendo os ditames da Lei de Criação da Agência Nacional de Aviação Civil, de 2005. Desalinha de maneira leve os incentivos de mercado, mas obteve eco nas próprias companhias aéreas com o discurso de que "apenas assentos ociosos em baixa temporada e comprados com antecedência" são utilizados. As empresas também acreditam que o apoio a essas iniciativas pode render frutos em seus pleitos de maior competitividade do setor, em particular a tributação e a precificação do querosene de aviação.
O sucesso de uma política de inclusão depende de se alicerçar em práticas de mercado e promover o acesso de forma autônoma, permitindo que o transporte aéreo se torne uma opção viável para aposentados de baixa renda, e de outros segmentos, sem depender constantemente de políticas públicas para existir. As companhias aéreas tem sido bastante eficazes em fazer isso desde a desregulação econômica do setor, em 2001. Será que precisamos mesmo do governo nisso?
Nosso estudo recente sobre inclusão no setor aéreo:
Oliveira, A. V., Santos, L. J., & Aldrighi, D. M. (2024). A hybrid econometric–machine learning framework to support market development in intercity passenger transport: the causal and predictive analytics of economic mobility features. Journal of the Air Transport Research Society, 100043.