Aeronaves paradas no solo e disputas nos céus: Latam vs Gol
Alessandro V. M. Oliveira
Fui convidado a dar minha opinião sobre o tema em uma matéria da jornalista Joana Cunha, publicada na Folha de S.Paulo em 16 de fevereiro de 2024 ("Gol tinha 20 aviões parados antes de pedir socorro nos EUA e brigar com Latam"). Abaixo seguem minhas considerações sobre o tema.
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O transporte aéreo no Brasil vive um momento desafiador neste início de 2024, dado que uma das suas maiores operadoras, a Gol Linhas Aéreas enfrenta um momento financeiro delicado, tendo efetuado pedido de recuperação judicial nos Estados Unidos (o chamado "Chapter 11"). Uma questão que se coloca vital no presente momento, de recuperação das viagens mas também de incertezas, diz respeito à capacidade das empresas colocarem aeronaves em operação para atender a demanda. A imprensa reportou que a empresa possuía 20 aeronaves paradas antes de recorrer ao Chapter 11, o que é paradoxal, em um momento em que faltam aeronaves no mercado. Esse cenário traz à tona a complexidade da gestão de uma frota aérea, especialmente em um período de instabilidade financeira e disputas com concorrentes. Em 2023, segundo a ANAC, a Latam deteve 37,8% dos passageiros-quilômetros pagos no país, contra 33,3% da Gol e 28,4% da Azul (Relatório Demanda e Oferta do Transporte Aéreo).
Aeronaves podem ficar paradas por uma variedade de razões. Um dos motivos mais comuns é a manutenção periódica das mesmas, que é categorizada em níveis diferentes de cheques - Cheques A, B, C, D e E. O Cheque A é o mais básico e frequentemente realizado a cada 500 a 800 horas de voo. O Cheque B segue, com uma periodicidade de 4 a 6 meses. Já o Cheque C, mais abrangente, ocorre a cada 18 a 24 meses, enquanto o Cheque D, que é a revisão geral da aeronave, é feito em intervalos ainda maiores, variando de acordo com o modelo da aeronave e as regulamentações. Por fim, o Cheque E, embora menos comum, refere-se a modificações específicas ou atualizações requeridas. Levando em consideração a frota da Gol de 141 aeronaves e a periodicidade desses cheques, uma estimativa bem aproximada indicaria que cerca de 6 a 12 aeronaves estariam paradas em qualquer momento apenas para manutenção rotineira. Assim, a existência de um subconjunto de aeronaves paradas não necessariamente sugere que outros fatores, além da manutenção programada, como desafios financeiros e negociações com os lessores, estariam influenciando a decisão da companhia aérea de mantê-las fora de operação.
Além dos cheques de manutenção rotineiros, um fator crucial que se intensificou após a pandemia é o desarranjo das cadeias produtivas, especialmente no que tange às peças de manutenção das aeronaves, como motores. A complexidade da produção dessas peças, aliado aos desajustes logísticos ainda não vencidos no pós-pandemia, catapulta os atrasos no recebimento desse material por parte das companhias aéreas, o que prolonga significativamente o tempo necessário para a manutenção. Esse cenário levou a um aumento no número de aeronaves paradas, já que os processos de manutenção, que são cruciais para a segurança e eficiência operacional, enfrentam demoras além do comum. Tal situação exacerbou os desafios operacionais, impactando diretamente a capacidade das companhias aéreas de manter uma operação ágil e eficiente em um período crítico de recuperação do mercado de viagens.
A tentativa da Latam de adquirir aeronaves paradas da Gol junto aos lessores - fato amplamente divulgado pela mídia -, adiciona uma problemática adicional à situação. Essa prática, embora comum em um mercado competitivo, levanta questões éticas e estratégicas, especialmente em um contexto de recuperação judicial. A Gol, ao tentar impedir essa aquisição, sinaliza a importância dessas aeronaves para sua operação futura e sua intenção de preservar seus ativos estratégicos.
Em resumo, a Gol vive um dilema entre gerenciar sua frota de forma eficiente, enfrentar desafios financeiros e navegar nas disputas com concorrentes. A decisão de ter que manter aeronaves paradas reflete a complexidade dessa gestão, equilibrando fatores operacionais, financeiros e estratégicos. À medida que a companhia avança em seu processo de recuperação judicial, será crucial encontrar um equilíbrio entre essas diversas demandas para garantir sua sustentabilidade e competitividade no setor aéreo.
Em minha participação na matéria, compartilhei minha visão sobre as implicações dessas dinâmicas do mercado. Seguem trechos que foram publicados:
"Para Alessandro Oliveira, professor do ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica), a situação da Gol é paradoxal porque ela tem aeronaves inativas em um momento em que as companhias aéreas no mundo todo enfrentam dificuldades com fornecedores de aviões e peças devido aos gargalos na cadeia de suprimentos."
"A Gol, com aeronaves inativas por questões internas, provavelmente de negociação contratual ou escassez de piloto, e recebendo aeronaves muito lentamente, não consegue ocupar os espaços para manter o market share dela".
"Faltando capacidade [de assentos ofertados], o crescimento da demanda acaba levando ao aumento da ocupação das aeronaves. E isso eleva os preços porque vai ter menos promoções, já que tem menos assentos para serem trabalhados pelo sistema de gerenciamento de receitas. Então, aquelas promoções acabam sendo mais minguadas".
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Título da Notícia: "Gol tinha 20 aviões parados antes de pedir socorro nos EUA e brigar com Latam"
Publicado em: 16 de fevereiro de 2024
Veículo: Folha de S.Paulo
Jornalista Responsável: Joana Cunha
URL da Notícia: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2024/02/gol-tinha-20-avioes-parados-antes-de-pedir-socorro-nos-eua-e-brigar-com-latam.shtml?utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=compwa
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Abaixo listo alguns trabalhos que já fiz sobre aeronaves e a capacidade de assentos da aviação comercial brasileira:
Narcizo, R. R., Oliveira, A. V. M., & Dresner, M. E. (2020). An empirical model of airline fleet standardization in Brazil: Assessing the dynamic impacts of mergers with an events study. Transport Policy, 97, 149–160. https://doi.org/10.1016/j.tranpol.2020.05.021
Bettini, H. F. A. J., & Oliveira, A. V. M. (2008). Airline capacity setting after re-regulation: The Brazilian case in the early 2000s. Journal of Air Transport Management, 14(6), 289–292. https://doi.org/10.1016/j.jairtraman.2008.04.006